sábado, 2 de novembro de 2013


O Povo Brasileiro 
A formação e o sentido do Brasil. 
Darcy Ribeiro (1922-1997).

Nessa grande obra de interpretação sobre o Brasil, Darcy Ribeiro nos presenteia com uma grande análise do que foi a nossa formação enquanto povo, sociedade e cultura. Nossa formação social, cultural, econômica e política. Acima de tudo, diríamos que se trata de uma interpretação histórico-antropológica.

Começarei não do começo do livro, mas sim da parte III. Lembro, caro leitores, que todos os livros aqui postados tratam de uma parte específica do livro, e que, dado um momento ou outro, sempre procuro voltar ao livro para postar mais capítulos, idéias e reflexões. 

III Processo Sociocultural. 

1 Aventura e Rotina.

As Guerras do Brasil.

Às vezes se diz que nossa característica essencial é a cordialidade, que faria de nós um povo por excelência gentil e pacífico. Será assim? A feia verdade é que conflitos de toda ordem dilaceram a história brasileira, étnicos, sociais, econômicos, religiosos, raciais etc. O mais assinalável é que nunca são conflitos puros. Cada um se pinta com as cores dos outros.
O importante, aqui, é  a predominância que marca e caracteriza cada conflito concreto. Assim, a luta dos Cabanos, contendo, embora, tensões inter-raciais (brancos versus caboclos), ou classistas (senhores versus serviçais), era, em essência, um conflito interétnico, porque ali uma etnia disputava a hegemonia, querendo dar sua imagem étnica à sociedade. O mesmo ocorre em Palmares, tida frequentemente como uma luta classista (escravos versus senhores) que se fez, no entanto, no enfrentamento racial, que por vezes se exibe como seu componente principal. Também os quilombolas queriam criar uma nova forma de vida social, oposta àquela de que eles fugiam. Não chegaram a amadurecer como uma alternativa viável ao poder e à regência da sociedade, mas suas lutas chegaram a ameaçá-las. 
Um terceiro exemplo é Canudos, que também mostra essas três ordens de tensão. A classista prevalece porque os sertanejos, sublevados pelo Conselheiro, combatiam, de fato, a ordem fazendeira, que, condenando o povo a viver num mundo todo dividido em fazendas, os compelia a servir a um fazendeiro ou a outro, sem jamais ter o pé-de-chão. Em consequência, não tinham qualquer possibilidade de orientar seu próprio trabalho para o atendimento de suas necessidades. Mas lá estavam pulsando os conflitos raciais e outros, inclusive o religioso. 
O processo de formação do povo brasileiro, que se fez pelo entrechoque de seus contingentes índios, negros e brancos, foi, por conseguinte, altamente conflitivo. Pode-se afirmar, mesmo, que vivemos praticamente em estado de guerra latente, que, por vezes, e com frequência, se torna cruento, sangrento. 
Conflitos interétnicos existiram desde sempre, opondo as tribos indígenas umas às outras. Mas isto se dava sem maiores consequências, porque nenhuma delas tinha possibilidade de impor sua hegemonia às demais. A situação muda completamente quando entra nesse conflito um novo tipo de contendor, de caráter irreconciliável, que é o dominador europeu e os novos grupos humanos que ele vai aglutinando, avassalando e configurando como uma macroetnia expansionista. 
[...]
O conflito interétnico se processa no curso de um movimento secular de sucessão ecológica entre a população original do território e o invasor que a fustiga a fim de implantar um novo tipo de economia e de sociedade. Trata-se, por conseguinte, de uma guerra de extermínio. Nela nenhuma paz é possível, senão com um armistício provisório, porque os índios não podem ceder no que se espera deles, que seria deixar de ser eles mesmos para ingressar individualmente na nova sociedade, onde viveriam outra forma de existência que não é a sua. Os seus alternos, que são brasileiros, não abrem mão, também, do sentimento de que, neste território, não cabe outra identificação étnica que a sua própria, que tendo sido assumida por tantos europeus, negros e asiáticos, deveria ser aceita também pelos índios. 
[...]
As forças que se defrontam nessas lutas não podiam ser mais cruamente desiguais. De uma lado, sociedades tribais, estruturadas com base no parentesco e outras formas de sociabilidade, armadas de uma profunda identificação étnica, irmanadas por um modo de vida essencialmente solidário. Do lado oposto, uma estrutura estatal, fundada na conquista e dominação de um território, cujos habitantes, qualquer que seja a sua origem, compõem uma sociedade articulada em classes, vale dizer, antagonicamente opostas mas imperativamente unificadas para o cumprimento de metas econômicas socialmente irresponsáveis.

Darcy também irá afirmar que há guerras entre os próprios invasores:

Colonos contra os jesuítas. 
Muito cedo surgiram desentendimentos entre o projeto comunitário dos inacianos (Inácio de Loyola) para a indiada nativa e o processo colonial lusitano que lhes reservava o destino de mão-de-obra de suas empresas. Surgiram assim que os padres fugiram de sua função prevista de amansadores de índios para se arvorarem a seus protetores. 
Ao longo de dois séculos e meio, os conflitos se sucederam no plano administrativo, chegando até à deportação dos jesuítas. 
[...]
Também graves foram os enfrentamentos entre catecúmenos e colonos, dos quais os padres procuravam se esquivar, dado o seu compromisso de realizar uma conquista espiritual, sem jamais apelar para a força. 
Desde os primeiros dias de colonização o projeto jesuítico se configurou como uma alternativa étnica que teria dado lugar a um outro tipo de sociedade, diferente daquela que surgia na área de colonização espanhola e portuguesa. 
Estrutura-se com base na tradição solidária dos grupos indígenas e consolida-se com os experimentos missionários de organização comunitária, de caráter proto-socialista. 
Darcy nos conta que a língua utilizada pelos missionários jesuítas nas suas reduções para reordenar os índios e civilizá-los não era o português nem o espanhol, mas o nheengatu
Tudo isso contrastava com o modelo que o colono ia implantando. 
A motivação de maior importância ( que gerava esse contraste e oposição), porém, foi a cobiça despertada nos colonos com o enriquecimento extraordinário de algumas Missões. Explorando as terras indígenas e sua força de trabalho, os jesuítas começaram a funcionar como províncias prósperas que se proviam de quase tudo, graças ao grande número de artesãos com que contavam, e ainda produziam excedentes, explorando drogas da mata que, juntamente com o produto de suas lavouras e com outras produções mercantis, faziam deles uma das forças econômicas principais do incipiente mercado colonial. 
Igualmente importantes como fontes de enriquecimento foram as ricas doações que receberam de colonos, que tudo davam, pedindo a salvação de suas almas. 
Segundo Darcy: O vulto do patrimônio jesuítico, ao tempo do seu confisco (1760), era enormíssimo. Estendia-se de norte a sul do país, na forma de missões e concessões territoriais concedidas pela Coroa, onde instalavam suas cinquenta missões de catequese, cuja base material eram engenhos de açúcar (dezessete), dezenas de criatórios de gado, com rebanho avaliado em 150 mil reses, além de engenhos, serrarias e muitos outros bens. 
A companhia seria também a maior proprietária urbana, pelo número de casas nas cidades que abrigavam os colégios, os seminários, os hospitais, os noviciados, os retiros, regidos por 649 padres e irmãos leigos.
A cobiça que provocou tamanha riqueza era, pelo menos, proporcional a ela, fazendo crescer a cada dia os que exigiam sua desapropriação, com esperança de apropriar-se, eles próprios (burocratas e colonos), de tantos bens. 
[...]
A guerra dos cabanos, que assumiu tantas vezes o caráter de um genocídio, com o objetivo de trucidar as populações caboclas, é o exemplo mais claro de enfrentamento interétnico. Ali se digladiam a população antiga da Amazônia, caracterizável como neobrasileira porque já não era indígena mas aspirava viver autonomamente para si mesma, e a estreita camada dominante, fundamentalmente luso-brasileira, formando um projeto de existência que correspondia à ocupação das outras áreas do país. 
[...]
Palmares é o caso exemplar do enfrentamento inter-racial. Ali, negros fugidos dos engenhos de açúcar ou das vilas organizam-se para si mesmos, na forma de uma economia solidária e de uma sociedade igualitária. Não retornam às formas africanas de vida, inteiramente inviáveis. Voltam-se a formas novas, arcaicamente igualitárias e precocemente socialistas. 
[...]
Uma terceira modalidade de conflitos que envolvem as populações brasileiras é de caráter fundamentalmente classista. Aqui se enfrentam, de um lado, os privilégiados proprietários de terras, de bens de produção, que são predominantemente brancos, e de outro lado, as grandes massas de trabalhadores, estas majoritariamente mestiças ou negras. 
Ainda que nas outras duas formas de conflito sempre se encontrem componentes classistas, mesmo porque em todas elas está presente a preocupação com o recrutamento de mão-de-obra para a produção mercantil, em certas circunstâncias elas ganham especificidade como enfrentamentos interclassistas. Isso ocorre quando não são contingentes diferenciados racialmente ou etnicamente que se opõem, mas conglomerados humanos ou estratos sociais multirraciais e multiétnicos propensos a criar novas formas de ordenação socioeconômica, inconciliáveis com o projeto das classes dominantes.
Canudos é um bom exemplo dessa classe de enfrentamento, como a grande explosão dessa modalidade de lutas. Ali, sertanejos atados a um universo arcaico de compreensões, mas cruamente subversivos porque pretendiam enfrentar a ordem social vigente, segundo valores diferentes e até opostos aos dos seus antagonistas, enfrentavam uma sociedade fundada na propriedade territorial e no poderio do dono, sobre quem vivesse em suas terras. 

O que esses conflitos têm em comum, segundo Darcy Ribeiro, é "a insistência dos oprimidos em abrir e reabrir as lutas para fugir do destino que lhes é prescrito". De outro lado, " a unanimidade da classe dominante que compõe e controla um parlamento servil, cuja função é manter a institucionalidade em que se baseia o latifúndio".

Concluindo:

Tudo isso garantido pela pronta ação repressora de um corpo nacional das forças armadas que se prestava, ontem, ao papel de perseguidor de escravos, como capitães do mato, e se presta, hoje, à função de pau-mandado de uma minoria infecunda contra todos os brasileiros.

Bom! Galera, retomarei mais partes do livro nas próximas postagens. Mas poderei postar outros livros intercalados. Aguardem!

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